Estados de Vácuo da Consciência: Uma Visão do Budismo Tibetano

Resumo

Na visão budista Theravada primitiva, a bhavanga, literalmente, a “base do vir a ser”, pode ser caracterizada como um estado de vácuo relativo da consciência, sem qualquer tipo de atividade mental conhecida como javana. Isso parece ser idêntico à consciência do substrato (alayavijñana) afirmada na escola posterior da Grande Perfeição (Dzogchen) do budismo tibetano. Este estado de consciência é apresentado não simplesmente como uma especulação filosófica, mas como um fenômeno mental experimentado que pode ser acessado por meio do atingimento da quietude meditativa (shamata). De acordo com a escola da Grande Perfeição, a consciência primordial (jñana) pode ser considerada como o estado fundamental definitivo da consciência, e pode ser supostamente determinada não dualmente por meio do cultivo do insight contemplativo (vipashyana). Esses estados de vácuo relativo e último da consciência apresentam semelhanças notáveis ​​com as definições de estados de vácuo relativo e absoluto do espaço apresentados na física contemporânea. As visões budista e científica podem ser consideradas complementares, cada uma com seus próprios pontos fortes e fracos.

Palavras-chave

 javana, atividade mental
bhavanga, base do vir a ser
Alayavijñana, consciência do substrato; (RYwiki: base de toda experiência [comum/samsárica]; aspecto consciente da base de toda experiência; a consciência da base de tudo, considerada comum, mas também considerada a base do samsara e do nirvana)
darmadhatu, espaço absoluto dos fenômenos
jñana, consciência primordial
estados de vácuo relativo e absoluto

Há 2.500 anos, o povo hebreu vivia exilado na Babilônia, com seus profetas cristalizando sua fé e crença religiosa no único Deus verdadeiro. Ao fazer isso, eles estavam criando o paradigma para o que nós, no Ocidente, agora chamamos de religião. Durante o mesmo período, os primeiros pensadores pré-socráticos gregos na costa jônica da Ásia Menor estavam enfatizando o uso da razão especulativa na busca por uma substância fundamental subjacente ao mundo físico. Ao fazer isso, eles estavam lançando as bases para o que hoje chamamos de filosofia e ciência. Nesse ínterim, outra forma de explorar a realidade estava surgindo na Índia, que desempenhou no máximo um papel periférico no Ocidente, mas que tem o potencial de fornecer uma ponte importante entre a religião, por um lado, e a ciência e a filosofia, por outro.

Em meio a este ambiente social diverso, um movimento menor de contemplativos contraculturais (shramanas) emergiu, consistindo de indivíduos que estavam principalmente interessados ​​em sondar por meio da experiência direta a natureza e os potenciais da consciência e sua relação com o mundo vivido da experiência (loka). Seu principal meio de explorar a mente era primeiro subjugar as paixões e, em seguida, desenvolver graus avançados de concentração meditativa (samadhi). Considerando seu foco na liberação espiritual (moksha), podemos considerar este movimento como uma reforma religiosa; ou, dada sua ênfase na observação, experimentação e razão, poderia ser considerado uma revolução científica. Mas acho mais apropriado chamá-lo de Revolução Noética, se baseando no termo grego noetos, referindo-se à faculdade cognitiva que apreende fenômenos não-sensoriais.

A exploração budista da mente e do resto do mundo natural, que surgiu dessa Revolução Noética, começou com Sidarta Gautama, mas não terminou com ele. Desde a época dele, cem gerações de contemplativos budistas se engajaram em suas próprias investigações, seguindo os temas de pragmatismo, ceticismo, empirismo e racionalismo dele. Desses séculos de investigação, surgiu uma teoria da consciência que, em primeiro lugar, distingue entre a atividade mental, chamada javana, e a base mental de onde essa atividade emerge, conhecida coma bhavanga.1 O termo budista antigo javana refere-se a todos os tipos de processos mentais ativos, incluindo percepções sensoriais, pensamentos discursivos, memórias, intenções, desejos e imaginação. Esses são os processos dinâmicos do espaço da mente, muitos dos quais podem ser observados por meio da percepção mental.

A base cognitiva de todas as atividades mentais e percepções sensoriais é a bhavanga, literalmente, a base do vir a ser, que sustenta todos os tipos de javana, como a raiz de uma árvore sustenta o tronco, galhos e folhas.2 Este é o estado fundamental de repouso da consciência, retirada dos sentidos físicos. Embora todos os processos mentais e sensoriais sejam condicionados pelo corpo e pelo ambiente, na visão budista eles realmente emergem da bhavanga, não do cérebro. Descrita como o estado natural e desimpedido da mente, seu brilho e pureza inatos estão presentes mesmo quando a mente está obscurecida por pensamentos e emoções aflitivas.3 A bhavanga pode ser caracterizada como um estado de “vácuo” da consciência, desprovido de todos os tipos de javana. De um modo geral, ela é indiscernível enquanto a mente está ativa, pois normalmente se manifesta apenas no sono sem sonhos e durante o último momento da vida de uma pessoa. Na verdade, Buda declarou que existem várias semelhanças nos processos cognitivos durante o adormecimento e a morte.4

Para desbloquear essa pureza e luminosidade naturais da consciência de modo que seu potencial radiante seja revelado, deve-se acalmar a atividade involuntária da mente por meio da prática da quietude meditativa.5 Desta forma, pode-se ver através da turbulência superficial da mente às suas profundezas límpidas. Na visão budista, a bhavanga atua como a base para todos os estados volitivos da consciência e, portanto, para o carma; e é, portanto, a base para o surgimento do mundo experienciado por cada indivíduo.

O mundo que cada um de nós experimenta não consiste em um sujeito independente que observa fenômenos objetivos independentes. Em vez disso, os vários modos de consciência sensorial e mental surgem de momento a momento em relação aos fenômenos que aparecem para eles e na dependência dessas faculdades cognitivas. A dualidade de sujeito e objeto é algo conceitualmente sobreposto à experiência, não algo que é descoberto por meio da observação empírica. Portanto, sem recorrer à postura do idealismo filosófico, pode-se dizer que a bhavanga serve como a fonte não-dual da criação do mundo-experimentado-e-seu-experimentador de cada pessoa.

O relato acima da javana e da bhavanga é baseado nos discursos do Buda registrados na língua pāli e seus comentários mais antigos. Uma descrição notavelmente semelhante do estado fundamental da consciência aparece na escola posterior da Grande Perfeição (Dzogchen) do Budismo Tibetano. Aqui, uma distinção é feita entre o substrato (alaya) e a consciência do substrato (alayavijñana). Os contemplativos tibetanos descrevem o substrato como o espaço vazio objetivo da mente. Esse estado de vácuo é imaterial como o espaço, um vazio em branco e sem pensamento no qual todas as aparências objetivas dos sentidos físicos e da percepção mental se dissolvem quando a pessoa adormece; e é a partir desse vácuo que as aparências ressurgem ao acordar.6

A consciência subjetiva desse vácuo mental é chamada de consciência do substrato. No curso natural de uma vida, isso é repetidamente experimentado no sono sem sonhos e, finalmente, experimentado no momento antes da morte. Um contemplativo pode conscientemente sondar essa dimensão da consciência por meio da prática da quietude meditativa, na qual os pensamentos discursivos ficam inativos ou dormentes e todas as aparências de si mesmo, dos outros, do corpo e do ambiente desaparecem. Nesse ponto, como nos casos de dormir e morrer, a mente é atraída para dentro e os sentidos físicos ficam inativos. O que resta é um estado de consciência clara e radiante que é a base para o surgimento de todas as aparências para o fluxo mental de um indivíduo. Todos os fenômenos que aparecem para a percepção sensorial e mental estão imbuídos da clareza dessa consciência do substrato. Como os reflexos dos planetas e estrelas em uma poça d’água, límpida e clara, as aparências de todo o mundo fenomenal aparecem dentro dessa consciência do substrato clara e vazia. Os contemplativos que penetraram nesse estado de consciência o descrevem como “um estado não flutuante ou sem oscilações, no qual se experimenta o êxtase como o calor de um fogo, a luminosidade como o amanhecer e a não-conceitualidade como um oceano inalterado pelas ondas”.7

A descrição acima pode ser facilmente mal interpretada como a expressão de um tipo de idealismo filosófico. No entanto, esses contemplativos não estão afirmando que todo o universo é da natureza da mente, apenas que o mundo individual de aparências surge dessa consciência do substrato. Além disso, as qualidades de êxtase, luminosidade e não-conceitualidade associadas à realização da consciência do substrato levaram muitos contemplativos a confundir isso com a natureza última da realidade, ou nirvana. Mas simplesmente permanecer neste estado de vácuo relativo da consciência não libera a mente de suas tendências aflitivas ou do sofrimento resultante. Ao sondar a natureza da consciência do substrato, a pessoa passa a conhecer a natureza da consciência em seu estado básico relativo. Essa realização, entretanto, não ilumina a natureza da realidade como um todo. Também é importante não confundir essa consciência do substrato com um inconsciente coletivo, conforme concebido por Carl Jung. Os relatos budistas da consciência do substrato referem-se a ela como um fluxo individual de consciência que continua de uma vida para a outra.

A tradição budista afirma que as aparências para os nossos sentidos não existem no espaço físico externo, independente da percepção. Da mesma forma, os objetos que constituem nosso mundo experimentado, cada um deles imbuído de atributos sensoriais, como cor, sabor, cheiro e textura, não se encontram no espaço objetivo descrito pela física moderna. Mas, no contexto de nosso mundo experimentado, é convencionalmente válido dizer que os objetos físicos que percebemos no mundo ao nosso redor, como planetas e estrelas, existem dentro do espaço intersubjetivo externo da consciência; e os objetos mentais que percebemos, como pensamentos e imagens mentais, existem no espaço subjetivo interno da consciência de cada indivíduo.

Os neurocientistas geralmente presumem que o cérebro humano existe no espaço real e objetivo da física, mas todas as suas imagens sensoriais e conceitos do cérebro aparecem no espaço da consciência. Além disso, todas as imagens sensoriais do espaço experimentadas pelos físicos surgem dentro do espaço externo de sua consciência, e todos os seus conceitos de espaço surgem dentro do espaço interno da consciência. Embora possamos acreditar na existência de um espaço independente da consciência, todos os nossos conceitos desse espaço real e objetivo surgem dentro do espaço da consciência. Quanto à relação entre as imagens sensoriais e seus objetos relacionados que se acredita existirem no mundo objetivo independente da consciência, o neurologista Antonio Damasio reconhece: “Não há imagem do objeto sendo transferido do objeto para a retina e da retina para o cérebro.”8 Para generalizar, as aparências para os nossos sentidos não são réplicas ou representações de fenômenos no espaço físico objetivo. Elas são criações fresquinhas surgindo no espaço da consciência. Da mesma forma, nossos conceitos de espaço e dos objetos dentro dele não são réplicas de nada que exista independentemente da mente. Em suma, o cérebro que os neurocientistas acreditam existir no espaço real e objetivo é tão desprovido de consciência quanto o espaço físico concebido pelos físicos.

Nem o espaço externo dos sentidos físicos nem o espaço interno da mente existem no cérebro, nem nenhum dos conteúdos desse espaço externo ou interno está localizado dentro da cabeça. No contexto do mundo experimentado, a demarcação entre o espaço externo e o interno é uma convenção, não uma realidade absoluta. Podemos experimentar imagens mentais, por exemplo, não apenas em nosso “olho mental”, com nossos olhos fechados e nossa atenção retirada do mundo físico, também podemos sobrepor imagens mentais em nossos campos sensoriais de experiência. Por exemplo, podemos imaginar o rosto de um homem na lua ou um arqueiro delineado em uma configuração de estrelas.

O rosto ou o arqueiro que imaginamos existe no espaço interno ou externo? Eles são criações livres da mente, ainda assim parecem estar no espaço externo; mas esse espaço externo pode ser singularmente subjetivo, não experimentado intersubjetivamente por todos os observadores competentes. Por outro lado, quando voltamos nossa atenção para dentro e focamos em uma imagem mental da lua, a imagem que percebemos mentalmente pode ser praticamente idêntica às imagens mentais da lua de outras pessoas. Embora ocorra no espaço interno de nossas mentes, ela é mais intersubjetiva do que as imagens que externamente sobrepomos às constelações. Em suma, não há nada inerentemente externo ou intersubjetivo no espaço externo, nem há nada inerentemente interno ou privado no espaço interno. Embora geralmente falemos em dirigir a atenção para fora, para o mundo físico, ou para dentro, para a mente, essa distinção é apenas convencional. Nossa experiência nos apresenta apenas o espaço não-dual da consciência, no qual as distinções entre externo e interno são artificialmente sobrepostas por conceitos e linguagem.9

Na tradição da Grande Perfeição do budismo tibetano, a não-dualidade do espaço externo e interno é chamada de darmadhatu, ou espaço absoluto dos fenômenos. Desse espaço emergem todos os fenômenos que constituem nosso mundo intersubjetivo experimentado. Todas as aparências de espaço externo e interno, tempo, matéria e consciência emergem do darmadhatu e consistem em nada mais do que configurações deste espaço absoluto. Enquanto o vácuo relativo do substrato pode ser verificado por meio do cultivo da quietude meditativa, o vácuo absoluto do darmadhatu pode ser realizado apenas através do cultivo do insight contemplativo.10 O modo de consciência com o qual se verifica este espaço absoluto é chamada de consciência primordial (jñana), que é a natureza última de todos os continuums individuais de consciência.

A realização experiencial do espaço absoluto pela consciência primordial transcende todas as distinções de sujeito e objeto, mente e matéria, na verdade, todas as palavras e conceitos. Tal insight não acarreta o encontro de um modo subjetivo de consciência com um espaço objetivo, mas sim a realização não-dual da unidade intrínseca de espaço absoluto e consciência primordial. O darmadhatu e a consciência primordial são coincidentes ou coextensivos, não-locais e atemporais. Enquanto o darmadhatu é a natureza fundamental do mundo experimentado, a consciência primordial é a natureza fundamental da mente. Mas, uma vez que os dois sempre foram da mesma natureza, a visão da Grande Perfeição não é aquela do idealismo filosófico, do dualismo ou do materialismo. Todas essas distinções entre sujeito e objeto, mente e matéria são consideradas meras fabricações conceituais.

A unidade de espaço absoluto e consciência primordial é a Grande Perfeição, muitas vezes referida como o “sabor único” de todos os fenômenos e a “pureza e igualdade de todo o samsara e nirvana”. A consciência do substrato discutida anteriormente pode ser chamada de estado de vácuo relativo ou falso da consciência, pois é diferente do substrato que ela verifica ou determina; ela é qualificada por experiências distintas de êxtase, luminosidade e não-conceitualidade; ela é determinada quando a mente é recolhida do mundo externo; e é limitada pelo tempo e pela causalidade. Portanto, apesar de sua vacuidade, ela tem uma estrutura interna assimétrica. A unidade de espaço absoluto e consciência primordial, por outro lado, é o vácuo absoluto ou verdadeiro. Embora ele também esteja imbuído das qualidades de êxtase, luminosidade e não-conceitualidade, elas não estão presentes como atributos distintos, mas como uma unidade inefável. Este vácuo absoluto é sondado enquanto se permite que a consciência repouse em um estado de não-dualidade, aberta a todo o universo. Desprovido de qualquer estrutura interna, ele incorpora uma simetria única e absoluta que transcende espaço, tempo, mente e matéria relativos.

A consciência do substrato pode ser caracterizada como o estado fundamental relativo da mente individual, no sentido de que, dentro do contexto de um fluxo mental individual, ela envolve o estado de atividade mais baixo possível, com o maior potencial e grau possível de liberdade ou possibilidade. Por exemplo, uma vez que um fluxo individual de consciência tenha sido estimulado ou catalisado a partir de seu próprio substrato no sono sem sonhos, ele pode se manifestar livremente em uma vasta diversidade de paisagens e experiências oníricas. Essa criatividade excepcional também é exibida sob hipnose profunda, que também explora a consciência do substrato. Mas esse potencial é acessado com mais eficácia quando se penetra lucidamente na consciência do substrato por meio da quietude meditativa. Nesse caso, a pessoa está vividamente ciente do substrato, em contraste com o embotamento que normalmente caracteriza o sono sem sonhos. Os contemplativos budistas relatam que essa realização totalmente consciente do estado fundamental relativo da consciência abre uma tremenda fonte de criatividade, que é amplamente obscurecida nas experiências normais do substrato durante o sono ou a morte.

A consciência primordial, por outro lado, pode ser caracterizada como o estado fundamental absoluto da consciência. Este estado de simetria perfeita envolve o menor estado possível de atividade mental, com o maior potencial e grau de liberdade possíveis no universo. No vácuo relativo e limitado do substrato – como no caso do sono profundo – eventos mentais específicos de um indivíduo emergem e se dissolvem de volta nesse espaço subjetivo da consciência. Mas todos os fenômenos ao longo do tempo e do espaço emergem e se dissolvem de volta no vácuo infinito e atemporal do espaço absoluto.

Quando alguém realiza a consciência do substrato atingindo a quietude meditativa, as aflições mentais são apenas temporariamente suprimidas ou contidas, mas como resultado da realização da consciência primordial, é dito que todas as aflições e obscurecimentos mentais são eliminados para sempre. Da mesma forma, o êxtase que se experimenta ao repousar no estado fundamental relativo da consciência é limitado e transitório, ao passo que o êxtase inconcebível que é inato ao estado fundamental absoluto da consciência primordial é ilimitado e eterno. Ao determinar a consciência do substrato, realiza-se a natureza relativa da consciência individual, mas na realização da consciência primordial, diz-se que o alcance da consciência se torna ilimitado. Da mesma forma, o potencial criativo da consciência que é acessado por meio da quietude meditativa é limitado, ao passo que aquele que é desvelado por meio do insight contemplativo último supostamente não conhece limites. Assim, em referência a este estado fundamental absoluto da consciência, o Buda declarou: “Todos os fenômenos são precedidos pela mente. Quando a mente é compreendida, todos os fenômenos são compreendidos. Ao colocar a mente sob controle, todas as coisas são colocadas sob controle.”11

 Os usos dos termos vácuo relativo e absoluto citados acima não são encontrados na literatura budista, embora eu esteja certo de que esta apresentação não distorce as descrições budistas tradicionais do substrato, da consciência do substrato, do espaço absoluto dos fenômenos ou da consciência primordial. Peguei esses termos emprestados da física moderna e, ao fazê-lo, convido a uma comparação entre os conceitos científicos e budistas dos estados de vácuo do espaço e da consciência. Na física, o vácuo é comumente definido como o menor estado de energia possível de um volume de espaço, e essa definição pode ser aplicada a vários outros sistemas, como uma carga elétrica incorporada no espaço. Eu peguei essa definição e a apliquei à consciência.

Um falso vácuo é aquele que não é totalmente desprovido de energia, mas é o estado de energia mais baixo possível nas atuais circunstâncias. Esse vácuo tem energia e estrutura e, portanto, não é perfeitamente simétrico. Qualquer configuração de massa-energia, incluindo a própria luz, é vista pelos físicos como uma excitação do espaço vazio, ou mais precisamente, como uma oscilação de grandezas de campo abstratas no espaço, não uma oscilação do próprio espaço. As massas flutuantes no vácuo são consideradas metaforicamente como “energia congelada” e causam uma curvatura do espaço, de modo que as distâncias entre dois pontos no espaço também flutuam. O físico Henning Genz escreve a esse respeito: “Os sistemas reais são, neste sentido, ‘excitações do vácuo’ – assim como as ondas da superfície em uma lagoa são excitações da água da lagoa… as propriedades do vácuo físico definem as possíveis excitações –, os sistemas possíveis que podem emergir do vácuo físico… O vácuo em si não tem forma, mas pode assumir formas específicas. Ao fazer isso, ele se torna uma realidade física, um ‘mundo real’”.12

Os cientistas não têm uma ideia clara do verdadeiro vácuo – do que quer que reste uma vez que tenham removido de algum espaço bem definido tudo o que as leis da natureza permitem que eles removam. A razão é que isso depende das leis da natureza – todas elas, incluindo aquelas que os cientistas ainda não descobriram. No vácuo congelado ou falso, quarks, elétrons, gravidade e eletricidade são diferentes, ao passo que na simetria perfeita do vácuo verdadeiro ou derretido, que é desprovido de qualquer estrutura interna, eles são indiferenciados. De acordo com o escritor científico K. C. Cole, “o mais próximo que podemos provavelmente chegar de imaginar a simetria perfeita é um espaço vazio uniforme, atemporal e sem características – a proverbial folha em branco, o silêncio absoluto, etc. Ela não pode ser percebida porque nada pode mudar. Tudo seria um e o mesmo; tudo seria igual, até onde podemos dizer, como o nada.”13

A evolução do universo, de acordo com alguns cosmologistas, começou com a simetria perfeita do verdadeiro vácuo, que resfriou em nosso estado de vácuo congelado atual, que pode um dia derreter novamente. Esta liberação de energia pode explicar a origem do Big Bang. Cole escreve a esse respeito: “Como a água que congela em gelo e libera sua energia em seus arredores, o ‘congelamento’ do vácuo libera enormes quantidades de energia… Tão simplesmente quanto a água congelando em gelo, o vácuo inflado congelou na estrutura que deu origem aos quarks, elétrons e, por fim, a nós.”14 E Genz sugere: “Talvez as flutuações da mecânica quântica tenham iniciado não apenas o material de que nosso mundo era feito antes do inflamento, mas também o próprio espaço-tempo. Talvez o verdadeiro vácuo, o verdadeiro nada, da filosofia e da religião deva ser visto como um estado totalmente desprovido de leis, de espaço e de tempo. Este estado pode ser pensado como nada mais que uma coleção de possibilidades do que poderia ser.”15

As visões acima a respeito do papel do verdadeiro vácuo do espaço físico na formação do universo apresentam uma semelhança notável com as visões budistas a respeito da relação entre o espaço absoluto dos fenômenos e o mundo relativo do espaço e tempo, mente e matéria. Em seu recente livro sobre a Grande Perfeição, o Dalai Lama escreve: “Qualquer estado de consciência é permeado pela clara luz da consciência primordial. Por mais sólido que seja, o gelo nunca perde sua verdadeira natureza, que é a água. Da mesma forma, mesmo conceitos muito óbvios são tais que seu “lugar”, por assim dizer, seu lugar de repouso final, não fica fora da extensão da consciência primordial. Eles surgem dentro da extensão da consciência primordial e é aí que se dissolvem.”16

Enquanto os físicos elaboraram suas teorias dos vácuos verdadeiro e falso com base em experimentos físicos e análises matemáticas, os budistas formularam suas teorias dos estados de vácuo verdadeiro e falso da consciência com base na experiência contemplativa e na análise filosófica. Ambas as tradições dão alta prioridade à investigação empírica e à análise racional, mas suas suposições iniciais e modos de observação são profundamente diferentes. A Revolução Científica começou com a suposição de que um Deus externo criou o mundo antes e independentemente da consciência humana. Os físicos, então, estabeleceram para si mesmos a meta de perceber esse universo objetivo de uma perspectiva do “olho de Deus” e formular suas leis em termos da própria linguagem de Deus, que eles pensavam ser matemática. Uma vez que estavam focados no reino do espaço objetivo e seus conteúdos que existem independentemente da consciência, era bastante natural para eles marginalizar o papel da mente na natureza; e suas teorias sobre os vácuos verdadeiro e falso naturalmente não fazem referência à consciência.

Na verdade, os defensores dessa visão mecanicista assumiram desde o início que a consciência não desempenha nenhum papel significativo no universo. Como proclama Antonio Damasio, “compreender a consciência pouco ou nada diz sobre as origens do universo, o sentido da vida ou o provável destino de ambos”.17 Tal confiança é notável à luz do fato de que os neurocientistas ainda não descobriram a natureza ou origens da consciência. Nesse ínterim, muitos neurocientistas compartilham o que Damásio chama de “um objetivo e uma esperança”, ou seja, formular uma explicação abrangente de como o tipo de padrões neurais que podem ser descritos atualmente com as ferramentas da neurobiologia, das moléculas aos sistemas, dão origem aos estados de consciência.18 Esses pesquisadores geralmente assumem que já sabem que a consciência não existe fora do cérebro, de modo que a única questão a ser resolvida é como o cérebro produz estados conscientes. Essa suposição é um exemplo do que o historiador Daniel Boorstin chama de “ilusão de conhecimento”. São estes, propõe ele, e não a mera ignorância, que historicamente têm atuado como os maiores impedimentos à descoberta científica.19

A importância dos estados de vácuo do espaço físico e da consciência dificilmente podem ser superestimados. O físico John March-Russell declara: “A crença atual é que você tem que entender todas as propriedades do vácuo antes de poder entender qualquer outra coisa.”20 Os físicos ainda não sondaram todas as propriedades do vácuo ou todas as leis da natureza, mas eles assumiram amplamente que a consciência é irrelevante para o universo que estão tentando compreender. Na medida em que o universo concebido pelos físicos existe independentemente da consciência, os budistas podem contestar que tal universo é irrelevante para o mundo da experiência humana, no qual a consciência desempenha um papel crucial.

Nem a visão científica nem a budista do vácuo são completas. A visão científica do universo tem pouco a dizer sobre as origens, natureza ou papel da consciência na natureza. E a visão budista não tem meios objetivos e quantitativos de examinar os estados de vácuo do espaço. Em vez de ver os modos de investigação dessas duas grandes tradições como incompatíveis, pode ser mais frutífero considerá-los complementares. Como focalizar dois olhos na mesma realidade, com a integração dessas duas perspectivas, podemos descobrir uma visão mais profunda e abrangente do que cada tradição alcançou sozinha.

Traduzido livremente para o português por Marcos Paulo Sousa (Kadag Lundrub) do original em inglês neste link.

 

Bibliografia

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Notas

1 Peter Harvey, The Selfless Mind: Personality, Consciousness and Nirvana in Early Buddhism (Surrey: Curzon Press, 1995).

2 Bareau, A. (1955) Les Sectes Bouddhiques du Petit Véhicule (Paris: EFEO, 1955), 72.

3 Anguttara Nikaya A.I.8-10.

4 Peter Harvey, The Selfless Mind, 159.

5 B. Alan Wallace, “The Buddhist Tradition of Shamatha: Methods for Refining and Examining Consciousness.” Journal of Consciousness Studies, 6, no. 2-3, 1999, 175-187; B. Alan Wallace, The Bridge of Quiescence: Experiencing Tibetan Buddhist Meditation (Chicago: Open Court, 1998).

6 Dudjom Lingpa, Dag snang ye shes drva pa las gnas lugs rang byung gi rgyud rdo rje’i snying po. Sanskrit title: Vajrahrdayashuddhadhutijñanahareshrılamjatiyatisma. Collected Works of H.H. Dudjom Rinpoche, 68.

7 Ibid., 31.

8 Antonio Damasio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness (New York: Harcourt, 1999), 321.

9 Para discussões mais elaboradas sobre este tema, veja B. Alan Wallace, The Taboo of Subjectivity: Toward a New Science of Consciousness (New York: Oxford University Press, 2000), 62-67, 110-117; William James, Essays in Radical Empiricism. (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1912/1976).

10 H. H. the Dalai Lama, Dzogchen: The Heart Essence of the Great Perfection, trans. by Geshe Thupten Jinpa & Richard Barron (Ithaca, NY: Snow Lion Publications, 2000).

11 Ratnameghasutra, citado in Shantideva’s Shikshasamuccaya. ed. P. D. Vaidya (Darbhanga: Mithila Institute, 1961), 68.

12 Henning Genz, Nothingness: The Science of Empty Space, trans. Karin Heusch (Cambridge, MA: Perseus Books, 1999), 26.

13 K. C. Cole, The Hole in the Universe: How Scientists Peered over the Edge of Emptiness and Found Everything (New York: Harcourt, 2001), 244.

14 Ibid., 177-8.

15 Henning Genz, Nothingness, 312.

16 H. H. the Dalai Lama, Dzogchen, 48-9.

17 Antonio Damasio, The Feeling of What Happens, 28.

18 Ibid., 322.

19 Daniel J. Boorstin, The Discoverers: A History of Man’s Search to Know His World and Himself (New York: Vintage Books, 1985), xv.

20 Citado in K. C. Cole, The Hole in the Universe, 235.